Na trilha sonora do vento

Geógrafa e bailarina, Lorena Freitas leva um pouco de sua vivência aos seus estudos e sua arte (FOTO: Gabriela Isaias)
Era fevereiro, num Rio de Janeiro pré-Carnaval, quando as fotos que ilustram essa entrevista foram feitas. Na zona portuária da cidade, aos pés do Museu do Amanhã, Lorena se encontrava com sua própria essência, como ela mesma diz, ao fazer o que mais gosta: dançar. Só que a trilha sonora era o vento que corria pela Guanabara e o cenário, um pôr do sol que coloriu de laranja todo o azul do céu.

Morando com o irmão na Lapa há pouco mais de um ano, a bailarina, formada em Geografia pela UFRJ, se divide entre as aulas de doutorado, as matérias escritas para a revista Woo! e as aulas de circo e natação. Nesse bate-papo a carioca falou sobre dança, a segregação social existente na cidade em que mora e a importância da apropriação de espaços pra quem, como ela, é do subúrbio.

Aquela Garota da Foto: Há quanto tempo você escreve pra Woo! Magazine? Como tem sido?
Lorena: Essa fase ainda é recente, mas está sendo muito intensa. Sou estudante há muito tempo e esse envolvimento com a área acadêmica estava me despertando a necessidade de escrever textos mais leves, menos formais. Até que um belo dia, surgiu uma chamada no grupo "Indique uma Mina" [grupo feminino no Facebook de indicações profissionais] para colaborar com uma revista online. Tentei, mas achava que não rolaria por não ter formação na área de Comunicação. Só que eles curtiram o material que mandei e de lá pra cá tenho aprendido muita coisa sobre cinema, teatro, artes, youtube, mídias sociais, produção, etc. Desde o meio do ano passado estou lá e tenho descoberto potencial para coisas que nem imaginava. Tem sido incrível!

Aos 27 anos a carioca faz doutorado em Geografia pela UFRJ (FOTO: Gabriela Isaias)
AGF: Você se formou em Geografia, certo? 
L: Sim, me formei em Geografia por amar especialmente a parte social, mas ao longo do curso descobri que gosto (e muito) da parte física (estudo costeiros, principalmente). Ao longo desses anos de graduação percebi que o que me atinge mesmo é buscar formas de canalizar meus esforços para melhorias reais na qualidade de vida das pessoas. 

“A cidade é um artigo de luxo, não é pra todo mundo”

AGF: As suas origens influenciaram o processo de escolha do seu objeto de estudo? 
L: Eu sou suburbana e sinto fortemente os impactos da falta de planejamento e gestão do território. Então fiz meu TCC em estudos urbanos, associando subcentralidades ao transporte ferroviário (que é um marco na vida de qualquer suburbano) e voltei meus esforços para o estudo de qualidade de serviço de cadeirantes. Agora, no doutorado, continuo nessa linha, mas buscando criar parâmetros que ainda são muito nebulosos para o deslocamento em cadeira de rodas.

Ela conta que, mesmo tendo se mudado para o Centro do Rio, sempre levará o subúrbio no coração (FOTOS: Gabriela Isaias)
AGF: Quando nos conhecemos uma frase que você disse me chamou bastante atenção: "o subúrbio está em mim e pra sempre". O que você pensa sobre uma cidade como o Rio de Janeiro, repleta de "cercas invisíveis" em seus espaços?
L: Eu amo a minha cidade. Amo! Mas a cada dia que passa me sinto mais revoltada por toda a segregação que ela abriga, principalmente quanto ao acesso às oportunidades. Passei a vida gastando cerca de 4 horas por dia para chegar na faculdade ou no trampo. Tive uma oportunidade que poucas pessoas têm, que foi a de morar perto das atividades. Só que eu percebo que essa segregação inviabiliza a qualidade de vida. A cidade é um artigo de luxo, não é pra todo mundo. E aí entra o que te falei sobre o suburbano. O suburbano precisa sair do subúrbio para ver arte, trabalhar, estudar. É uma necessidade corrosiva. Mas como somos bons em fazer limonada, aprendemos a nos apropriar dos espaços. 

“O suburbano se apropria dos espaços (...) Ele vai até onde as coisas estão e assim se permite conhecer muita gente, muitas atividades e vertentes culturais”

AGF: Me fale um pouco mais sobre essa apropriação.
L: Eu conheço pessoas que moram na zona sul e não conhecem Madureira. Ou que vivem na própria Tijuca [zona norte do Rio] e nunca pisaram em Santa Cruz. O suburbano se apropria dos espaços. Ele está no centro, na zona sul, na zona norte, na oeste... Ele vai até onde as coisas estão e assim se permite conhecer muita gente, muitas atividades e vertentes culturais. E o que eu considerado mais maneiro é que o suburbano tem a vivência do subúrbio, que é uma coisa única. Temos nossas figuras, nossos contos urbanos, nossos medos, nossas saudades e o principal: temos muita unidade. E isso eu nunca vou perder. O subúrbio é uma parte importante de mim, da minha personalidade, da minha história. 

Lorena já dançou jazz, sapateado, contemporâneo e balé moderno (FOTO: Gabriela Isaias)
AGF: Há algum tempo você realizou um mini-projeto intitulado "Em Espaços". Tem a ver com essa apropriação suburbana, certo? Pode falar um pouquinho sobre ele?
L: Uma amiga minha que é artista e trabalha com ilustração me falou sobre o Decola! LAB, que é um projeto incrível de uma mina sinistrona de São Paulo, no qual ela motiva pessoas a desenvolver seus projetos dando dicas, tutoriais, etc. Ela tem muito material disponível online, mas também realiza oficinas e tudo mais. Foi assim que ela desenvolveu um desafio chamado #30ideias30dias, que consistia em ter uma ideia condutora e explorá-la de 30 formas diferentes, sempre com fatores limitantes. Então, por exemplo, essa minha amiga ilustrou 30 situações cotidianas utilizando uma paleta de cores azul. No meu caso, a proposta foi fazer 30 vídeos em locais que despertassem algo em mim (uma memória afetiva, uma inquietação, etc) usando músicas da minha playlist. Vou te falar que é difícil, viu? Mas estimula a criatividade porque, de acordo com a Rafa, criadora do Decola, a criatividade precisa de limites para se tornar concreta. E eu acho que ela tá certa. Esses 30 vídeos para mim foram uma forma de estar em contato com a dança (que me faz falta) e com a cidade do Rio (que amo e da qual gosto de me apropriar).

Ela conta que, ao viajar para fora do país, percebeu que fronteiras fazem menos sentido na vida que nos livros (FOTOS: Gabriela Isaias)
AGF: E por que você parou de dançar?
L: Em 2016 eu me mudei para o Centro do Rio para morar com o meu irmão. Fazendo doutorado e voltando a trabalhar eu precisaria de mais horas de estudo e, convenhamos, passar 5 horas por dia no trânsito não ajudaria muito, né? Então precisei abdicar disso. E vou te falar que foi bem complicado. Tive ansiedade, fiquei deprimida... Mas hoje me envolvo em outras atividades que me fazem muito feliz, como circo e natação. Mas, de todo coração, sinto falta de dançar todos os dias.

[quando danço] É um desafio liberar meus sentimentos e não ter medo de ser vulnerável, ser imperfeita e aceitar minhas limitações”

AGF: O que a dança representa pra você?
L: Dançar pra mim significa encontro. Encontro com a minha essência, com meu melhor. Eu dancei desde menina, aos oito, nove anos, quando inaugurou uma lona cultural com atividades artísticas a preços populares perto da minha casa. Isso permitiu que muitos jovens suburbanos tivessem seus primeiros contatos com arte. Foi lá que comecei a fazer teatro e dança pra mais tarde me mudar, fazer parte da escola Marta Bastos e participar de espetáculos da companhia, tirar registro profissional como bailarina de contemporâneo... Assim percebi que quando estou em movimento (seja no palco, na rua, na aula) me sinto em constante desafio ao aliar técnica e emoção. É um desafio libertar meus sentimentos e não ter medo de ser vulnerável, ser imperfeita e aceitar minhas limitações. Dançar pra mim é liberdade. É amor.

A geógrafa considera sua transição capilar como o início de uma mudança de postura consigo mesma (FOTO: Gabriela Isaias)
AGF: E como é a sua relação com o seu corpo? Você se gosta?
L: Minha relação com ele não é boa não... Infelizmente é uma luta constante para aceitar minhas curvas e dobrinhas. Como te disse, dancei por muitos anos e esse ambiente é bem cruel. Passei muito tempo nesse meio e é difícil me dissociar disso. Mas venho tentando desconstruir isso em mim (e nesse ponto o blog Modices tem me ajudado todos os dias!). Eu me amo. Me amo muito. Me preservo e me cuido, mas não me aceito completamente. Sou do tipo que está sempre de dieta mas nunca segue e fica chateada, sabe? [Risos]

AGF: Agora, um pequeno parênteses: você é apaixonada por carnaval! Além de curtição essa data tem algum outro significado pra você?
L: Eu sempre gostei muito de carnaval. Desde pequena meus pais me levavam aos coretos e bloquinhos perto de casa, em Magalhães Bastos, onde cresci. Mas essa paixão como senti esse ano é algo mais recente. De uns anos para cá reparei como essa época é boa pra deixar a criatividade fluir e encarnar personagens que amo. É meio pirado, mas eu tenho uma pequena frustração por não ter continuado atuando, então aproveito a oportunidade para ser Hitch-Girl [personagem da série de filmes Kick Ass], Alice Ayres [personagem do filme Closer-Perto Demais], por aí vai. E tem uma outra coisa que me encanta no carnaval: a união que ele gera. Ele aproxima pessoas distantes, desconhecidas, deixa todo mundo mais tranquilo e aberto a amizades. Então acho que é por isso que eu amo: pela "montação" de looks, pela alegria e por todo mundo que conheço ou me reaproximo. 

Lore chama atenção para a importância do processo de apropriação dos espaços urbanos (FOTO: Gabriela Isaias)
AGF: Sobre transição capilar, quando você passou por ela e o que isso significou pra ti? Mudou algo em você?
L: Foi e vem sendo um processo lindo. Eu sempre usei o cabelo com cachos, mas desde muito cedo fazia relaxamento. Só que em um determinado momento eu comecei a perceber que aqueles tratamentos estavam enfraquecendo o meu cabelo e que não dava para continuar. Até tentei deixar crescer um pouco, mas quando vi o tamanho dos cachinhos na parte da frente desisti porque achei que não era o que eu queria, que não ia curtir. Passei mais alguns meses tendo contato com experiências de outras meninas em transição e tomei coragem. Mas antes achei que valeria a pena tentar outras coisas. Então fiz progressiva. [Risos]

“Vi cachos tão incríveis que fui me apaixonando por eles todos os dias”

AGF: Espera. Quando decidiu voltar ao cabelo natural você fez escova progressiva?
L: Sim! Mas não foi pra deixar liso. Queria deixar meus cachos o mais abertos que eles pudessem. E eu curti muito essa fase: meus dias de fios lisos, meus dias de cachos... Foi uma fase curta de experimentação mesmo. E aí que comecei a deixar crescer. No final de 2015 fiz um corte bem curto atrás e maior na parte da frente. Ali que surgiu o amor pelas minhas texturas. Vi cachos tão incríveis que fui me apaixonando por eles todos os dias. Até que em fevereiro/março de 2016 eu fiz o meu big chop [corte que tira toda a química do cabelo] quando só estava com três dedos de raiz! Ficou bem curtinho mesmo. 

Ela encara a dança como um momento de encontro e desafio consigo mesma (FOTO: Gabriela Isaias)
AGF: E você se adaptou rápido?
L: No começo foi estranho. Sérião! [Risos] Meu cabelo tem umas três texturas diferentes e entender quais as melhores finalizações demorou um pouco. Então os meses foram passando e ele foi começando a fazer blacks cada vez maiores. Ah! Eu fiz também boxbraids duas vezes e amei muito. Acho que foi uma coisa de encontro. Encontro com minha personalidade (pois meu cabelo é muito parecido comigo), encontro com as minhas raízes africanas (que só me enchem de orgulho e poder), encontro com a minha autoestima. O processo não foi fácil, até porque não é simples ouvir todo dia um "nossa, por que você fez isso?" ou um "poxa, você tinha um cabelo tão bonito!". Mas, na medida em que ele foi crescendo e os cachinhos se formando... Não só eu me senti mais bonita do que nunca como o resto das pessoas ao meu redor também! Acho que a gente muda a postura e começa a brilhar mais, sei lá. É uma coisa espiritual. Claro que tem dias em que o meu cabelo não colabora, mas, no geral, eu sou apaixonada por cada fiozinho, por cada possibilidade que ele me dá, e, especialmente, pela possibilidade de perceber mais como eu sou. Então: Sim, vale a pena! Meninas, sejam fortes! Se aproximem de outras meninas na mesma situação, se empoderem! Somos lindas, infinitas e poderosas!

AGF: Agora a última e mais tradicional pergunta do blog: imagine que você vai ler essa entrevista daqui a 10 anos. Que recado você daria a você mesma no futuro?
L: Eu diria que vale a pena se jogar e que não há motivo para não se amar. “Insegurança faz parte, Lo”.

• ● • 


LIGEIRINHAS

Um medo. Solidão.
Uma frustração. Não viver de arte atualmente.
Uma vontade. Viajar o mundo ao longo da vida.
Um superpoder. Meu cabelo! [Risos] 
Dança ou teatro? Difícil… Musical, que tem os dois!
Café ou Toddynho? Café sem açúcar.
Manda nudes? Não. Nunca.
Três perfis no Instagram: Eita! [Risos] @todiih, @modices e @woomagazine.
Maternidade. Morro de vontade, mas tenho medo de colocar mais gente nesse mundo.
Um filme. Clube da Luta.
Um cheiro. Café.
Uma pessoa. Sophia e Rafael, meus afilhados. Não dá pra ser só um!
Um sonho. Viajar muito com mozão (que eu ainda não sei quem é)! [Risos]


⇢ Para ver mais fotos de Lorena clique aqui e acesse o meu Flickr.



22 comentários:

  1. Lorena é um mulherão da porra com certeza. Sou muito honrada de trabalhar com essa garota tão incrível e construir uma amizade tão boa. Ela só merece sucesso e coisas boas, tenho certeza. Adorei a entrevista e Lore, você é linda e muito forte. 💞

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  2. Que linda! Estou apaixonada pelas fotos.. Não sabia que ela também trabalhava na Woo!, vou ficar de olho nas suas matérias! Adorei o post, você é uma linda!

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  3. Nossa, Lorena além de arrazar muito, é um mulherão! Muito linda ela! Estou apaixonado pelas fotos, são todas bem lindas. Adorei o post

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  4. Linda, amei as fotos.
    Lorena sempre arrasa neh Amei seu Post
    Bjs

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  5. Que fotos, que cabelo, que ensaio. 💖 Lorena é linda e autêntica e super te entendo. As vezes a gente cursa uma graduação e acaba se encontrando em outro rumo da vida. Acontece e faz até bem. 😊

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Não conhecia a Lorena, mas me identifiquei muito pois sou carioca e sou suburbana. Muitas pessoas não entendem o que acontece quando somos do subúrbio, e é exatamente como ela citou. Linda, inteligente... Vou voltar depois para saber um pouco mais sobre essa linda mulher.
    bjs

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  8. Nossa, ela arrasa hein!
    Eu adorei o jeito que ela falou sobre dançar, já que é uma das coisas mais gostosas de se fazer na vida hahaha
    beijinhos ♥

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  9. Maravilhosa ! Minha eterna admiração por esta linda mulher, carioca , suburbana de coração valente. Marta Bastos

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  10. Fotos maravilhosas.. totalmente ao som do vento mesmo. Gostei muito da entrevista por se tratar de uma mulher forte como ela. As partes que ela fala da dança me encantaram, sou fascinada por essa area

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  11. Muito bom conhecer melhor que está por trás de um trabalho tão bacana. A força da mulher é algo admirável, dançar é algo mágico.

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  12. Primeiramente, as fotos estão lindas demais, são de uma leveza e poder incríveis. Segundamente, acho que a entrevista foi super certeira, pq pegar uma pessoa suburbana que ainda é jovem e se preocupada tanto com o espaço em que vive é maravilhoso.
    Terceiramente, super concordo com tudo que foi ddito, e acho que uma das coisas que todos nós devemos fazer é esse apropriação de espaços e claro o engajamento nos projetos para que tudo isso de certo :)

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    1. Obrigada, querida! Vamos ocupar e fazer dessa cidade nossa ❤

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  13. Este comentário foi removido pelo autor.

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  14. Linda!!! Por dentro, por fora, de trás pra frente, de cabeça pra baixo... Linda de todas as maneiras possíveis. Obrigada universo, por poder fazer parte dela!

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  15. Acabei de conhecer seu blog e amei! Parabéns pelo trabalho, a fotografia é apaixonante! E a Lo é incrível! <3

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  16. Este comentário foi removido pelo autor.

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