Quando a mina periférica ocupa seu lugar

Aos 23 anos, Raissa Santos se divide entre a zona sul do Rio de Janeiro e a Baixada carioca (FOTO: Gabriela Isaias)
Ela sai de casa às 5 horas da manhã e volta às 10 da noite. Às vezes nem volta. É que nem sempre tem ônibus pra Baixada Fluminense quando já é tarde da noite e Raissa acaba precisando dormir na casa de amigos. Aos 23 anos ela se divide entre lugares de classe A e B na zona sul carioca e a realidade de São João Meriti, perto de três favelas da região.

Após passar bastante tempo longe do Rio de Janeiro, a jovem publicitária voltou à cidade no início de 2012 para estudar na UFRJ. De lá pra cá entrou em contato o feminismo, passou por um processo de transição capilar, trabalhou com moda e descobriu os bastidores da publicidade do Brasil. Nessa entrevista, Raissa Santos compartilhou um pouquinho de suas raízes, falou sobre seu estilo e conversou sobre a necessidade de pessoas plurais dentro das agências publicitárias.

Aquela Garota da Foto: Você tem um estilo único. Como começou seu interesse por moda?
Raissa: Meu interesse por moda começou na adolescência por uma questão de diferenciação. Era aquela coisa bem adolescente de querer se diferenciar dos outros. Eu estudava em um colégio militar, então a gente praticamente era padronizado lá dentro e um dos únicos momentos em que se conseguia criar, ser você mesma, era quando a gente tinha simulado nos fins de semana e podia ir com as nossas roupas ao invés do uniforme. Então, na minha cabeça, todo mundo era igual e por isso comecei a me vestir de uma forma diferente e achar que através da roupa eu poderia me expressar pros outros e mostrar quem eu era. Foi ali que começou.

“A minha relação com a moda não mudou a minha identidade, ela fez parte da minha identidade”

AGF: O quanto a sua relação com a moda mudou a sua identidade?
R: A minha relação com a moda não mudou a minha identidade, ela fez parte da minha identidade. Foi um artifício que eu usei pra mostrar quem eu sou, uma forma de expressão, já que a partir do momento que comecei a trabalhar com moda passei a ter uma visão muito maior. Sou uma pessoa que não usa muitas cores, então a minha moda em si meio que transpira a praticidade que eu preciso pra viver no dia a dia. Não tenho um armário colorido, tenho poucas cores que combinam entre si e que consigo usar em várias ocasiões.

Atenta ao mundo da moda, Raissa diz gostar de peças neutras e funcionais (FOTO: Gabriela Isaias)
AGF: Me conte um pouco mais do seu estilo.
R: O meu estilo foi mudando muito com o tempo e é uma mistura, já que vou achando peças e roupas que eu gosto e vou incorporando ao que eu visto no dia a dia. Também uso muito mais coisas básicas do que coloridas. Então meus pontos de cor ficam nos acessórios e na maquiagem pra que as roupas tenham uma dupla funcionalidade e possam caminhar em momentos diferentes.

“Tenho um pouco de aversão a essa coisa de ficar idolatrando ou curtindo muito uma pessoa famosa. Me inspiro mais em coisas reais”

AGF: Ainda sobre moda, quais seus ícones de estilo?
R: Cara, isso eu não sei responder. Eu não tenho um ícone de estilo, talvez inspirações, apesar de nunca ter tido uma inspiração muito foda, que eu fique muito viciada. Tenho um pouco de aversão a essa coisa de ficar idolatrando ou curtindo muito uma pessoa famosa. Me inspiro mais em coisas reais, meninas que eu sigo no Instagram, etc, do que em algum “ícone”. Talvez o mais longe de mim que eu ache muito, mas muito legal, é a Solange [Knowles]. Ela tem toda uma questão relacionada entre as atitudes e o estilo, além de ser bem ousada. Isso eu acho bem maneiro.

Ela aposta na diversidade nas equipes de agências publicitárias como chave para a originalidade (FOTO: Gabriela Isaias)
AGF: Quando você foi pro Mato Grosso do Sul?
R: Eu nasci no Rio de Janeiro e fiquei aqui até os sete ou oito anos. Fui pro Maranhão, depois morei em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, até os meus 18. Isso aconteceu porque o meu pai é militar. Vim ao Rio pra fazer faculdade e tô aqui até agora, estudando e trabalhando. Moro na Baixada, na mesma vila que morei quando estávamos aqui e tô me virando sozinha, já que meus pais não vieram.

AGF: Você passou parte da sua vida se mudando porque seu pai é militar. Como foi essa época? Você curtia as mudanças ou preferia permanecer em algum lugar?
R: Na verdade eu me mudava bastante, mas ficava um tempo considerável em cada lugar. Saí do Rio de Janeiro com oito anos, então não lembro de muita coisa. No Maranhão fiquei três anos e em Campo Grande mais de 10 anos. Essas mudanças não me afetaram, elas me fizeram ser um pouco mais desprendida em termos de mudança.

AGF: Entre Rio de Janeiro, Maranhão e Mato Grosso do Sul, qual lugar você mais gostou de morar e por que?
R: Cada lugar foi especial, não tem um que eu goste mais. Acho que como fui pro Maranhão muito pequena, tenho poucas lembranças de lá quando criança, então não deu pra aproveitar muita coisa ou sentir o gosto da cidade. Então vou falar que gosto mais de Campo Grande porque é onde eu fui criada, onde passei mais tempo. Acho uma cidade organizada, tranquila de se morar e diferente do caos do Rio de Janeiro. Mas hoje, com 23 anos, não sei se me encaixo em alguma das três. 

Raissa define seu processo de transição capilar como "solitário e libertador" (FOTOS: Gabriela Isaias)
AGF: Seu pai é militar. Você enfrentou machismo em casa?
R: Não lembro de ter sofrido machismo em casa. Meu pai é bem quieto, não é muito de falar. Acho que o único momento que aconteceu algo assim e eu posso lembrar porque foi um fato muito pontual foi quando fiz 15 anos e minha mãe comentou que eu já estava na época de namorar. Lembro que meu pai fez uma cara meio fechada. Mas ele nunca me impediu de fazer nada. Na verdade ele falava como uma forma de estímulo pra que eu trabalhasse e estudasse primeiro e depois me envolvesse com alguém e buscasse outras coisas. Ele foi um ponto fora da curva, estimulou que eu não me subjugasse a nenhum homem. Mas desde esse episódio dos meus 15 anos ele foi mudando bastante.

AGF: Você levanta questões feministas para serem debatidas com seu pai?
R: Eu não levo questões feministas ao meu pai porque já não moro mais com ele. Então é difícil sentar e ter uma conversa em que eu possa abordar o tema. Ele tem posicionamentos bons, mas como não tenho muito contato por já não morar com ele, não sei a fundo suas opiniões. Quando eu vim morar no Rio, aos 18 anos, meu pai já não tinha mais nenhum “poder” sobre mim, a não ser minha dependência financeira. Então minha vida é meio independente da opinião dele em relação a qualquer coisa. Mas eu faço um monte de textão em rede social! [Risos]

A carioca morou no Maranhão e no Mato Grosso do Sul durante toda a sua adolescência (FOTOS: Gabriela Isaias)
AGF: Por falar em “textão”, você aborda muitas pautas negras no seu Facebook. No que o feminismo negro se diferencia do “feminismo tradicional”?
R: Se diferencia em como ele aborda todas as partes da vida da mulher negra. Eu me identifico com o feminismo negro primeiro por ser negra e depois por ele tocar em questões que o feminismo branco não aborda com relação às nossas vidas. Há questões de mulheres periféricas, o que é ser mulher negra, transição capilar e outras particularidades que o feminismo branco não abarca e não precisa pensar, já que as questões dele são outras. O feminismo negro aborda isso e vai além, então se torna mais completo em relação a minha vivência, ao meu dia a dia. Ele se preocupa em entender a experiência da mulher negra na sociedade, que é muito particular pra cada nível de classe em que ela se encontra. Mas eu comecei por ele [feminismo branco], acho que todo mundo começa por ele e vai entendendo e procurando/estudando outras vertentes que acha que pode agregar alguma coisa.

“Passar pela transição capilar sozinha fez com que eu me entendesse como negra, visse aquele cabelo crescendo e percebesse o quanto ele combinava comigo e eu não percebia por questões estruturais”

AGF: Você passou por transição capilar. Como foi esse processo?
R: Meu processo de transição começou em 2012, então eu não tinha esse monte de informações que as meninas têm agora. Começou por influência de outras pessoas em abrir meus olhos pra questão do feminismo. Então eu fui procurando mais sobre e acabei questionando como o meu cabelo era uma forma de ser aceita nos meios que eu andava. Eu alisava o meu cabelo desde os 12 anos, já que a minha mãe era cabeleireira e fazia as progressivas em mim, e comecei todo o processo no final de 2012 até fazer o big chop (na época eu nem sabia que o nome era esse!) em 2013. Foi um processo meio solitário, mas ao mesmo tempo libertador. Passar por isso sozinha fez com que eu me entendesse como negra, visse aquele cabelo crescendo e percebesse o quanto ele combinava comigo e eu não percebia por questões estruturais. É engraçado porque, apesar de solitário, não foi exatamente doloroso. Eu tinha tanta certeza do que queria que não me importava se o cabelo estava metade crespo, metade liso ou se alguém achava alguma coisa. Foi libertador e bem particular porque eu não tinha com quem dividir aquilo. Então é foda ver o que tá acontecendo agora e toda essa conversa sobre transição capilar e racismo envolvidas.

AGF: Como é a sua relação com o seu corpo hoje?
R: Eu só fui gordinha na infância, então sempre fui magra. Sou privilegiada nesse quesito porque, por mais que a gente veja mais mulheres brancas do que negras nas capas de revista, o meu corpo sempre foi representado de alguma forma. Aliás, ele é o mais representado. Então eu não tenho nenhum problema com ele, só pequenas insatisfações. 

Ela credita seu desprendimento em termos de mudança ao fato de já ter morado em vários lugares (FOTO: Gabriela Isaias)
AGF: Há um tempo você publicou algumas fotos da Baixada dizendo para as pessoas não te confundirem já que, apesar de andar com roupas legais e frequentar lugares bacanas, você veio de lá, “onde as pessoas ficam com preguiça de ir”. Manter as origens é fácil? 
R: Manter as minhas origens não é difícil, até porque vim morar no Rio sozinha e a visão que eu tinha da cidade foi totalmente desconstruída pelos perrengues que comecei a passar. Eu vim pra morar com a minha avó onde eu nasci e não deu muito certo. Venda Velha, a região que eu moro em São João de Meriti [cidade da Baixada onde Raissa nasceu] fica no meio de três favelas, então isso me ajudou muito a entender de onde eu vim (já que não lembrava de muita coisa quando saí do Rio de Janeiro), pra onde eu to indo e o que isso representa. Então lá em 2012 [quando Raissa voltou para o Rio de Janeiro] eu já comecei a entender isso. A questão é que eu perambulo e ando muito por lugares classe A e B do Rio de Janeiro, saio 5 horas da manhã de casa, volto 10 da noite ou às vezes nem volto e tenho que dormir na casa de alguém por estar muito tarde e não ter ônibus pra voltar. Isso tudo faz com que eu me lembre de onde eu vim.

“Tive oportunidades, condições de agarrar essas oportunidades e ir pra frente com a educação que eu pude ter”

AGF: Você se deslumbrou em algum momento com a sua realidade na zona sul?
R: Eu não cheguei a me deslumbrar com a realidade da zona sul. Quando eu vim pro Rio de Janeiro achei que eu ia morar sozinha, que não ia passar perrengue, mas isso logo caiu por terra. Eu tinha todo aquele ideal adolescente que acha que tudo vai ser maravilhoso e incrível. Só que não foi isso que aconteceu. [Risos]

AGF: Você veio de Campo Grande (MS), uma cidade totalmente organizada, para o Rio de Janeiro. Os contrastes sociais te assustaram?
R: Eu logo me acostumei a esses contrastes porque às vezes você está na zona sul, mas tem uma favela ao lado de uns prédios e mansões incríveis. Todos esses contrastes me lembram de onde eu vim. Então, por circular por vários lugares, ter roupas legais e condições de comprar algumas coisas, quando eu falo que moro em algum lugar as pessoas se surpreendem um pouco. Acham que, por eu me vestir de forma diferente das pessoas da favela, eu sou digna de mais respeito do que elas. Só que isso não pode acontecer, eu não sou melhor do que ninguém que mora na Baixada, no subúrbio, na favela ou num beco. Só tive oportunidades, condições de agarrar essas oportunidades e ir pra frente com a educação que eu pude ter - diferente de várias pessoas que moram no mesmo lugar que eu. Nunca precisei trabalhar e estudar ao mesmo tempo, nunca precisei sustentar a casa junto aos meus pais. Tive condições de estudar e só me dedicar a isso. Não são todas as pessoas que têm esse privilégio. 

Filha única, Raissa é bastante independente e tem se virado sozinha no Rio de Janeiro (FOTOS: Gabriela Isaias)
AGF: Como a publicidade entrou na sua vida?
R: A publicidade entrou na minha vida de um jeito totalmente estúpido! [Risos] Já na escola brincava de fazer comerciais de tv com uma amiga. A gente atuava, criava jingles, diálogos, whatever. Eu já quis fazer Medicina, Direito, Relações Internacionais… Aí eu lembrei dessa brincadeira de infância, comecei a ver a grade curricular de Publicidade e falei “caraca, é isso!”. Foi a melhor coisa que eu já lembrei! [Risos]

“Eu quero que cada vez mais minas periféricas e da Baixada consigam estar no mesmo lugar que eu”

AGF: E você procura levar seu pensamento periférico pra dentro das agências ou mantém essas realidades separadas?
R: Por todos os lugares em que eu trabalhei fui levando esse pensamento e tentando mostrar o quão estrutural é a visão que algumas pessoas têm. É difícil ter que conviver e experimentar algumas situações desagradáveis, mas ao mesmo tempo isso me dá força pra tentar ir mudando as coisas. Eu quero que cada vez mais minas periféricas e da Baixada consigam estar no mesmo lugar que eu.

Ela conta que seu guilty pleasure é assistir a "programas-porcaria" na tv, como Big Brother Brasil (FOTOS: Gabriela Isaias)
AGF: O que você tem a dizer sobre a publicidade atual no Brasil?
R: Difícil de avaliar! [Risos] Depende muito. Publicidade de cerveja é machista, mas aí a Skol acabou de lançar um comercial super bacana com questões que vêm sendo discutidas, como a diversidade e a representatividade. Então ainda existem conceitos muito engessados, mas eles estão mudando. Tem muita coisa legal na publicidade brasileira, mas depende muito do campo que você pergunta. 

“Com pessoas plurais dentro das agências é possível conseguir resultados muito mais originais”

AGF: Então me diz o que você acha que é preciso mudar na publicidade brasileira.
R: No geral, nas grandes agências, ainda é preciso entender como se inserir em uma sociedade que muda a cada dois segundos. Precisa-se de uma equipe mais plural, com gente de várias idades e de vários backgrounds que ajudem a suprir a demanda de informação e reivindicações que existe. É com essa bancada diferente, com pessoas plurais dentro das agências, que é possível conseguir resultados muito mais originais. E quando falo de originalidade não estou falando sobre anúncios revolucionários e cheios de tecnologia. Às vezes o conceito criativo pode ser bobo, mas muito bom. Esse mesmo, da Skol, que é o primeiro que me veio a cabeça: “redondo é sair do seu quadrado”. Isso é uma coisa simples, tem tudo a ver com a marca e casa perfeitamente com as discussões que têm rolado. As marcas não precisam estar presentes em todas as pautas, protestos, etc, mas precisam se atualizar cada vez mais pra entender o que está acontecendo.

Entre seus objetivos estão terminar a monografia da faculdade esse ano e "ser muito foda" (FOTOS: Gabriela Isaias)
AGF: Quais os seus planos para o futuro?
R: Cara, eu aprendi que eu consigo as coisas na minha vida de uma forma meio torta. Então eu não planejo coisas a longo prazo, meus planos são pra um futuro mais próximo. Se eu fosse pensar em um plano que eu tinha quando estava em Campo Grande e vim pro Rio de Janeiro era: “um dia eu vou ser muito foda”. Esse era o plano e continua sendo meu objetivo para o futuro: “um dia ser muito foda”. Agora se esse dia vai ser daqui a um ano, dois ou três meses e qual vai ser o significado desse “foda”... Isso é totalmente aberto.

AGF: Imagine que você vai ler essa entrevista daqui a 10 anos. Que recado você daria a você mesma no futuro?
R: Acho que falaria pra eu continuar seguindo esse objetivo de tentar abrir portas, nem que seja questionando as pessoas ao meu redor sobre os preconceitos que elas têm. Também diria pra tentar continuar evoluindo e mudando o que eu acho legal em mim mesma, minhas atitudes e opiniões. Porque mudar não é ruim e eu tenho muita resistência a mudanças. Acho que seria isso, é um conselho bom pra daqui a 10 anos.


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LIGEIRINHAS

Um medo. Não alcançar meus objetivos.
Uma frustração. Não saber fazer minhas unhas do pé.
Uma saudade. A vida sem responsabilidades de quem precisava só estudar.
O que te arranca um sorriso? Gestos simples de gentileza.
Café ou Toddynho? Café.
Um superpoder. Invisibilidade.
Maternidade. Uma possibilidade em minha vida.
Uma comida. Bruschettas.
Um lugar. Minha casa.
Foi golpe ou não foi golpe? Foi golpe.
Manda nudes? Mando pra quem eu confio.
Três perfis para seguir no Instagram: @mybodyeletric, @mctaya e @luizabrasil
Um cheiro. De gasolina.
Uma palavra. Defenestrar.

⇢ Para ver mais fotos de Raissa clique aqui e acesse o meu Flickr.


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