Ela quer ter outra história pra contar

Divertida e extremamente autêntica, Axana Uwimana arranca sorrisos aonde quer que vá (FOTO: Gabriela Isaias)
Não há um lugar em que a ruandesa Axana Uwimana, 22 anos, não roube a cena. Imagine: seu vocabulário é lotado de gírias engraçadas; suas opiniões são sempre originais; seu estilo é completamente único; e sua história é majestosa. Carismática no nível máximo, dona de sua própria beleza e empoderada no sentido mais livre da palavra, a africana é fã de Beyoncé, Grace Jones e Malcolm X.

Prestes a se formar em Serviço Social na UCDB, Axana compartilhou um pouco de sua história como refugiada no Brasil, explicou a origem de seu nome (fala-se Acsana) e contou sobre o processo de fortalecimento que passou durante o período de adaptação ao país. Atualmente ela mora em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, mas planeja ultrapassar as fronteiras do estado para realizar seus sonhos.

Aquela Garota da Foto: Você nasceu na África?
Axana: Bem, eu nasci em Ruanda no período em que o país estava com problemas políticos que acabaram gerando o genocídio entre os povos ruandeses. Surgiu a possibilidade de fugir para o país vizinho, Burundi, já que meus pais têm formação acadêmica. Nós atravessamos fronteiras e países inteiros para chegar na Europa. Fomos para a Bélgica, passamos pela França, mas não ficamos por lá porque meu pai recebeu uma proposta de um companheiro de trabalho para vir ao Brasil dar aula como professor universitário. Na época estavam aceitando e contratando muitos profissionais no país e pensamos que seria mais fácil pedir asilo diplomático e abrigo aqui. Nós chegamos em 1996 ou 1997, quando eu tinha uns três anos. A primeira cidade em que moramos foi Uberlândia, em Minas Gerais. Com o tempo meu pai acabou sendo transferido para o Mato Grosso do Sul para lecionar na Universidade Católica Dom Bosco no curso de Engenharia Civil. Quando viemos pra cá [Mato Grosso do Sul] nos sentimos mais ambientados por ser um estado menor.

AGF: Você já voltou à Ruanda para visitar a sua família?
A: Fui e foi uma das melhores sensações de toda a minha vida poder voltar ao país do qual eu fui tirada. Ter a oportunidade de visitar a minha família, o local onde os meus avós foram enterrados.... Há toda uma ancestralidade e estar lá e poder ver e entender isso, por mais que eu não falasse a língua deles, foi maravilhoso. Eu voltei à Ruanda de coração aberto pra receber toda aquela energia e historicidade que existe naquele país. Fiquei lá um mês e foi extremamente gratificante conhecer de onde eu vim e saber a importância do meu sangue, o que ninguém vai me tirar. Cada um tem as suas histórias e é importante resgatá-las e revivê-las para saber quem nós somos. A mídia me passava que lá só tinha fome e miséria. Quando eu cheguei descobri que havia muito mais do que isso. Foi enriquecedor! Eu me reconheci em um país do qual eu me perdi.

Devido ao genocídio de Ruanda, Axana teve que deixar seu país aos três anos (FOTOS: Gabriela Isaias)
AGF: Você pensa em voltar a viver lá?
A: Eu conquistei muita coisa no Brasil e quero conquistar cada vez mais! Porém, eu acredito em voltar sim, mas não pra viver uns dez ou 15 anos, mas pra fazer uma história no meu país. Eu acabei saindo de lá no meio de uma guerra e queria ter uma outra história válida pra contar. É uma meta de vida.

“Muitas vezes a opressão vem de casa na forma de cuidado e atenção para evitar o sofrimento dos filhos”

AGF: Você contou que ainda era criança quando seus pais saíram de Ruanda. Hoje em dia nós vivemos uma crise migratória. Muita gente do extremo Oriente pede asilo na Europa e o fluxo de estrangeiros vindo para o Brasil também aumentou. O que você pensa ao ver essas pessoas passando pelo que você passou aos três anos?
A: Essa pergunta é bastante interessante. As pessoas que saem dos seus países não estão saindo tipo “ai, vou ali e já volto”. Não. Muitas vezes nos países de onde elas vêm estão ocorrendo guerras e até algum tipo de devastação por forças da natureza. Então essa situação das migrações tem todo um significado que nós, seres humanos, não compreendemos. Às vezes a gente acha que é algum tipo de “inimigo” vindo. Aqui no Brasil mesmo tem muito dessa rixa, essa disputa. O brasileiro tem aquilo de “ah, o pessoal tá vindo de fora e vai roubar a minha vaga de emprego”, eu vejo muito isso. Só que esses fatores acabam aumentando todos os tipos de preconceitos. E é nessa questão que entra o racismo e a xenofobia. Os imigrantes têm outra cultura, outra etnia, outro costume e a maioria das pessoas que os recebem não está preparada para o diferente. Então eu creio que agora, 20 anos depois da minha mudança pra cá, o problema persiste: falta empatia. Mesmo morando aqui desde os três anos eu continuo sendo uma refugiada e tento acolher os que estão chegando agora. 

Dentre as personalidades que a ruandesa mais admira estão Viola Davis e Malcolm X (FOTO: Gabriela Isaias)
AGF: Você chegou ao Mato Grosso do Sul bem pequena e, em Campo Grande, ainda são poucos os negros que ocupam espaços como os que você frequenta. Você teve alguma dificuldade de adaptação e integração?
A: Eu acho que me adaptei bem, de certa forma, mesmo não conseguindo visualizar muitas coisas que hoje sei que eram formas de opressão que eu vivenciei na época da escola. Às vezes eu não tinha para onde correr e às vezes não tinha a maldade, como criança, de enxergar o que estavam fazendo. Só que muitas vezes a opressão vem de casa na forma de cuidado e atenção para evitar o sofrimento dos filhos. A minha mãe dizia que eu tinha que me cuidar por causa do meu “cabelo ruim”, pois caso contrário ninguém iria me olhar, que eu tinha que usar o brinco que era moda no colégio, batom, entre outras coisas. Ela sempre quis me mostrar que eu estou em uma sociedade diferente, em um país diferente. Então acho que sofri mais opressão em casa do que fora. No colégio existiam as chacotas e os risinhos, mas não era algo que me deixasse abalada. Acho que serviu para me fortalecer e acabou me tornando autêntica e mente aberta até porque eu procurei saber o que acontecia para o outro poder apontar para mim do jeito que apontava. Foi assim que descobri a história do povo negro no Brasil. Hoje eu vejo que esse jeito rude da minha mãe falar do meu cabelo era uma forma me proteger. 

"Foi uma das melhores sensações da minha vida poder voltar ao país do qual eu fui tirada"

AGF: Então, no seu caso, a opressão serviu como um fortalecimento?
A: Foi um processo de empoderamento. Até porque, se a gente não lutar contra, se esgota, sofre e acaba com a nossa saúde mental. Não tô dizendo que a gente não fique chateado ou triste. Mas essa pode ser uma oportunidade de transformar a tristeza em uma luta pela mudança.

AGF: E o seu nome, Axana? Foi motivo de chacota na escola? Você sabe o significado?
A: Muito boa essa pergunta, gostei! [Risos] Realmente é um nome muito diferente e eu ficava sempre me perguntando sobre ele quando era mais nova. [Risos] Pesquisando na internet e perguntando para os meus pais descobri que é um nome ucraniano. Parece que na época da divisão entre a Rússia e a Ucrânia existiu uma princesa chamada Roxana ou Roxane [fala-se Rocseine]. Só que o meu pai tirou o R e o O do início e colocou A. Então, se falássemos inglês, a pronúncia correta seria “Eicseine”. Como a gente veio para o Brasil, lê-se Axana, mas meu nome é Axana [pronuncia-se Acsana]. Eu, pelo menos, me chamo Axana [Acsana], pra não falar outra coisa! [Risos] Então meus pais falam que eu sou uma princesa, desculpa aí! [Risos]

A estudante se prepara para apresentar sua monografia na reta final do curso de Serviço Social (FOTOS: Gabriela Isaias)

AGF: Você é militante do feminismo negro e uma figura importante na juventude ativista do Mato Grosso do Sul. Essa consciência negra sempre esteve contigo ou foi algo adquirido após entrar na faculdade de Serviço Social?
A: Eu acho essa questão muito importante de ser abordada. Muitas vezes quando falamos em feminismo abordamos o feminismo negro. Nós, mulheres negras, temos que nos identificar, olhar pra dentro e ver qual a nossa conjuntura e a nossa realidade. Para mim essa construção ocorreu aos poucos, a partir da universidade. Antes eu não lia muito e não me interessava tanto sobre esse assunto até por ter uma personalidade forte e não me abalar com o que acontecia na escola. Mas hoje consigo ver que é um processo que a mulher negra vai passar: discriminação, xingamentos e coisas horríveis. Mas é aí que ela vai se fortalecer e entender porque passou por tudo aquilo. A gente tem um contexto histórico e temos que olhar pra trás e entender porque o outro aponta e acha que pode ter esse direito de nos apontar. O Serviço Social me trouxe toda essa bagagem, esse pensamento e a possibilidade de enxergar a mim e a sociedade como um todo.

AGF: Quem são as pessoas que você mais admira no movimento negro?
A: Posso fazer uma listinha? [Risos] Gosto de Beyoncé a Grace Jones! Viola Davis, Panteras Negras, Malcolm X, Martin Luther King, Muhhammad Ali….

AGF: Se você pudesse escolher qualquer pessoa no mundo pra jantar contigo, quem você escolheria?
A: Meu pai, Eugene Uwimana.

Apesar de ter sofrido preconceitos na infância, Axana transformou as experiências ruins em fortalecimento (FOTO: Gabriela Isaias)
AGF: Qual é o seu guilty pleasure? Aquilo que você adora e tem vergonha de falar pras pessoas que gosta?
A: [Risos] Eu gosto de cheirar bombril.

AGF: Cheirar bombril? Como é isso? Deixa doidão?
A: [Risos] Viu como eu tenho vergonha de falar essas coisas? [Risos] Não dá nenhuma onda não, é só o cheiro do Bombril que eu gosto, aquele aço. Abre o Bombril e cheira ele que você vai ver!

AGF: Imagine que você vai ler essa entrevista daqui a 10 anos. Que recado você gostaria de dar a você mesma no futuro?
A: Nossa, isso me fez pensar o que eu venho refletido todos os dias: como eu quero estar no futuro. Em um longo período o que terei construído? É interessante pensar o quanto eu ainda quero crescer e buscar a minha evolução. Acho que eu “me” diria: “continue seguindo o seu coração e faça as coisas com amor e garra”.

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LIGEIRINHAS

O que te tira o sono? Paixões incompreendidas.
Um medo. O fim do mundo.
Uma frustração. Ter que ir embora do meu país de origem muito pequena.
Uma saudade. Família reunida.
Café ou Toddynho? Café.
Um superpoder. Telepatia.
Maternidade. Transformação do ser humano feminino.
Um filme. A Cor Púrpura.
Foi golpe ou não foi golpe? Foi golpe!
Manda nudes? No chat privado não, mas faria nu artístico.
Três perfis no Instagram. O meu @macchiaxa, @whododatlikedat@whoopigoldberg.
Um cheiro. De flores e plantas, da natureza em si.
Uma pessoa. Minha mãe.
Uma palavra. Amor.


⇢  Para ver mais fotos de Axana clique aqui e acesse o meu Flickr.


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